Marco Aurélio Garcia: “Só há dois tipos de relação sem conflito: as de subordinação e as que não existem”
Sergio Leo | VALOR
De Brasília
É uma “balela” a ideia de que a presidente Dilma Rousseff abrirá mão da ideologia na política externa em favor de uma gestão “técnica”, garante o assessor internacional da Presidência, Marco Aurélio Garcia. Principal encarregado do tema no Planalto, ele deve ganhar até quatro novos assistentes para se ocupar “não só do urgente, mas também do importante”. Se convidado, o Brasil tende até a aceitar participar da missão de fiscalização às instalações nucleares do Irã, para assegurar seu uso pacífico, adianta.
Garcia confirma, porém, mudanças de ênfase na diplomacia, sob Dilma. Se confirmada a censura iraniana a livros do escritor brasileiros Paulo Coelho, o Brasil protestará, assim como pretende pronunciar-se mais intensamente sobre questões de direitos humanos. Mas essa “vigilância” será aplicada a todos, diz ele, até países como Estados Unidos e Suíça, que, apesar de terem casos de abuso, não costumam ser alvo de resoluções de censura.
Na entrevista, cujos trechos principais estão publicados a seguir, ele fala da divisão de tarefas na diplomacia e dos planos para a China, comenta a situação da Venezuela e fala das relações “muito boas” com os Estados Unidos, não afetadas pelo recente ataque ao Brasil, feito pelo embaixador americano em Genebra, Michael Punke. O diplomata acusou o Brasil de escalada protecionista, mas Garcia minimiza: “Não vamos responder ao sub do sub.”
Valor: Como será a divisão de tarefas entre a assessoria e o Itamaraty?
Marco Aurélio Garcia: A resposta a esse problema será dada praticamente. O Ministério de Relações Exteriores, em função de sua grande estrutura, da qualidade de seus responsáveis, entre eles o atual ministro, tem um trabalho que se caracteriza não só pela formulação mas pela execução da política externa, graças à gigantesca capilaridade que tem.
Valor: O que muda no papel de sua assessoria com o novo governo?
Garcia: Essencialmente não houve grandes mudanças. Vamos precisar ampliar a assessoria, mas uma ampliação discreta, para que possamos nos ocupar não só do urgente mas também do importante. Essa assessoria existe, na forma atual, desde a eleição de Tancredo Neves. Variou um pouco de função.
Valor: Que questões “importantes”, como disse, a assessoria passará a tratar?
Garcia: Hoje fazemos discurso, pontos de discussão, notas de informação para o presidente, tratamos da correspondência internacional, da agenda política não-diplomática [chefes de partido, intelectuais importantes]. Vamos ter uma conexão muito forte com a Secretaria-Geral da Presidência, que terá um assessor internacional, e o ministro Gilberto Carvalho me pediu que trabalhássemos muito articuladamente. Aqui em alguns momentos atuamos como porta-vozes, a pedido da Secretaria de Comunicação. Temos muito tarefa de presença em eventos internacionais.
Valor: Um evento desses é o Fórum Econômico Mundial, em Davos. Por que a presidente resolveu não ir a esse?
Garcia: Ela tem prioridades na agenda internacional e hoje o Fórum de Davos não tem para nós a importância que teve no começo do governo [Luiz Inácio] Lula [da Silva], que o transformou em acontecimento político de alta significação: foi a Porto Alegre [no Fórum Social Mundial] e no dia seguinte foi a Davos, onde disse que estava falando a mesma coisa que havia dito na véspera em Porto Alegre. O Brasil hoje não precisa se apresentar nessa reunião em Davos, já tem visibilidade extraordinária, há clareza muito grande sobre nossos objetivos e pelo exercício extraordinário que Lula fez na esfera internacional, que Dilma vai continuar.
Valor: Diz-se que Dilma não tem tanta vocação, tanto interesse pelos assuntos internacionais como o ex-presidente Lula.
Garcia: Circula uma série de clichês sobre o diferencial Dilma e Lula. “Dilma será menos ideológica e mais gerencial e mais técnica, menos política”, dizem. Balela. É uma pessoa altamente politizada, senão não teria chegado à Presidência da República. Tem visões políticas muito precisas, um pensamento político muito desenvolvido, amadurecido no curso de décadas. Ela vai dar seguimento a isso e vai se ocupar dos temas da política internacional na medida em que forem considerados relevantes. se vai se ocupar mais ou menos só a prática vai dizer.
Valor: Por exemplo…
Garcia: Em muitos casos, Lula fez a abertura de terreno, novas fronteiras diplomáticas do Brasil. Hoje, minha concepção é que vai estar muito mais na ordem do dia a necessidade de consolidar essas fronteiras, eventualmente ampliar uma coisa aqui ou ali, dar mais organicidade à nossa política externa e é por isso que vamos precisar nos ocupar das questões importantes; vamos ter de adensar nossa capacidade reflexiva aqui, preparar dossiês mais consistentes, além dos que já existem tradicionalmente, do Itamaraty, que são muito bons.
Valor: Mas para que haver estudos do Planalto e do Itamaraty?
Garcia: Vamos fazer nossa contribuição porque a angulação não é contraditória, mas tem uma percepção política diferenciada. Não fosse assim a assessoria não se justificaria. Temos também uma agenda política não diplomática que é relevante: vem um chefe da oposição, ele deve ser recebido, não deve ser recebido?
“O Brasil hoje não precisa se apresentar no Fórum de Davos, pois já tem visibilidade extraordinária”
Valor: Vocês vão preparar documentos para orientar a posição do governo?
Garcia: A assessoria já fez isso, em muitas ocasiões preparei trabalhos. Realizamos missões também e o fato de eu ter relações com governantes na região ajuda. E aí se dá um tratamento mais específico às questões. Mas sempre articulei com o ministério. Invariavelmente, vou aos encontros com chefes de Estado ou a mesas do movimento social com o embaixador local, ou, quando não é possível, informo imediatamente ao embaixador. Muitas vezes a presidente fala ao telefone com alguém, imediatamente produzimos aqui um informe e mandamos ao Itamaraty. A sintonia aqui é muito, muito grande, até porque se fosse para brigar com o Itamaraty eu não faria. Tem de haver uma orientação muito clara em todas as políticas do governo, não só a política externa.
Valor: O site WikiLeaks mostrou tentativas da diplomacia dos Estados Unidos de trabalhar com o que via como diferença de posições no governo Lula…
Garcia: Essa divisão aparece como suposição: fulano está mais à esquerda, outro é mais nacionalista. Não há caso em que haja elemento probatório de dualidade entre nós na política externa. Mesmo nos depoimentos do ex-embaixador Clifford Sobel não aparece nada que mostre conflito de orientação. Evidentemente não sou igual ao Celso [Amorim], ao [Antônio] Patriota. Tenho as minhas ideias, que são amplamente conhecidas.
Valor: Logo no começo do governo, em entrevista, a presidente disse que não se absteria em uma votação sobre o Irã, como se absteve o governo, seguindo a posição tradicional da diplomacia. O que de fato há de diferente nisso?
Garcia: Ela se manifestou sobre um episódio concreto. Outra coisa é a forma pela qual vamos abordar os temas gerais dos direitos humanos. Não há divergência entre os procedimentos anteriores e os futuros. A presidenta quer que o governo se manifeste sobre esse assunto. Agora, será urbi et orbi [para a cidade e o mundo]. Nossas manifestações serão sobre todas as formas de violação dos direitos humanos. Ela pediu que não houvesse ambiguidade, mas também preservando os critérios de não seletividade. Esse tema aparece com força, porque se trata do Irã. Naqueles dias anteriores, mencionou-se a execução de uma mulher nos Estados Unidos com perturbações mentais sob acusação de que tinha matado o marido. Não nos pronunciamos, mas não é só isso: não houve resolução apresentada no Conselho de Direitos Humanos da ONU.
Valor: O Brasil será mais ativo na apresentação de propostas?
Garcia: Vamos ter de ter uma vigilância maior nessa questão, um trabalho mais intenso – o atual é muito bom, a embaixadora Maria Nazaré Farani Azevedo mostrou que votamos mais de 98% de condenações. O Brasil não é uma ONG, não pode ser uma agência de certificação de direitos humanos, o tempo todo sobre todos os assuntos, senão a política externa se limitará a isso, com todas suas implicações. Existem questões emblemáticas, e sobre elas, por sugestão do Itamaraty e nossa, a Presidência vai se manifestar, acatando ou não.
Valor: Por exemplo?
Garcia: Se se confirmar efetivamente a censura aos livros do Paulo Coelho, vamos nos manifestar, não há a menor dúvida. Recentemente, na posse da Dilma, falamos com o ministro do Irã sobre aspectos que causam problemas ao Irã e a nós também. Sobre a questão da Sakineh Ashtani [condenada à morte sob suspeita de morte do marido]. Li no “Estadão” que os iranianos parecem não terem gostado muito disso. Paciência. Não queremos com isso comprometer o esforço que fizemos em relação ao acordo de Teerã [sobre uso de energia nuclear pelos iranianos]. Se possível, queremos fazer com que o acordo contribua para a adesão plena do Irã à energia nuclear para fins exclusivamente pacíficos.
Valor: O Brasil continua tratando do assunto nuclear?
Garcia: Há conversas sobre o possível envio de uma missão fiscalizadora da Agência Internacional de Energia Atômica (Aiea) para verificar as instalações nucleares do Irã. Se nos convidarem, a tendência, possivelmente, é de aceitarmos. O grande problema é que se tentou muitas vezes tratar duas coisas: “Foram se meter em assunto que nada tem a ver, a política nuclear, e são complacentes com os direitos humanos no Irã.” Se há crítica de complacência em relação a direitos humanos na China, nos Estados Unidos, na Suíça, que proíbe minaretes muçulmanos, estou disposto a discutir. Vamos ter de engajar no governo um debate profundo, para ver como compatibilizar questões conflitivas: os valores universais e o respeito à autodeterminação.
Valor: Debate entre quem?
Garcia: No governo, a presidente dará suas opiniões, o Itamaraty dará, nós daremos, a ministra [de Direitos Humanos] Maria do Rosário dará. O Patriota, eu e a ministra discutimos outro dia questões gerais. E vamos ter de provavelmente afinar mais a discussão de como enfrentar resoluções submetidas ou à Terceira Comissão das Nações Unidas ou ao Conselho de Direitos Humanos, sobre como compatibilizar os pontos de vista envolvidos, sem ser discriminatório.
Valor: Qual a orientação da presidente para questões econômicas, como as do G-20, que reúne as economias mais influentes do mundo?
Garcia: Ainda não fizemos discussão sobre temas do G-20, porque ultrapassa em muito o âmbito da política externa e seus mecanismos formais de execução. O carro-chefe do governo nas questões do G-20 é o Ministério da Fazenda, da mesma forma como nas questões ambientais é o Ministério do Meio Ambiente. O que a presidente insistiu muito é que ela quer uma afinação muito grande entre os ministérios envolvidos nos temas internacionais, que não se resumem no Ministério das Relações Exteriores. Por exemplo, há questões em que o Ministério da Defesa tem de ser invariavelmente escutado.
Valor: Em que temas?
Garcia: Vários. Temas do desarmamento, próprios temas do comércio exterior, que equipamentos vamos usar nas Forças Armadas, transferência de tecnologia. Não é tema limitado ao Ministério do Desenvolvimento, do Itamaraty.
Valor: E a China, é um competidor contra o qual devemos nos armar ou um parceiro nas mesas internacionais?
Garcia: É as duas coisas, e nossa habilidade vai ser combinar medidas de proteção dos nossos interesses e medidas de associação. Como vantagens, com a China, não temos conflitos de natureza geopolítica, temos até programas de cooperação internacional. Os interesses de natureza econômica que há teremos de resolver com as armas econômicas. Pretendemos não só aprofundar uma reflexão sobre a China, mas multiplicar iniciativas. O ministro Patriota vai à China, foi sugerido que eu fosse também…
“Se for confirmada a censura do Irã aos livros do Paulo Coelho, vamos nos manifestar, não há dúvida”
Valor: O senhor irá?
Garcia: Sim. Há uma proposta que o embaixador chinês me fez há algum tempo, quero ver se posso materializá-la antes da reunião. Pensamos também na ida do ministro [do Desenvolvimento, Fernando] Pimentel. Vamos ver. Há ideia de aproveitarmos a reunião dos Bric [Brasil, Rússia, Índia e China] na China para uma visita de Estado. E se for assim queremos uma visita caprichada, vamos levar não só agentes econômicos, empresários, mas vamos ter uma agenda bem mais elaborada.
Valor: Os Estados Unidos acusaram duramente o Brasil de protecionismo. Não é um sinal negativo?
Garcia: Não me surpreende, já havia sido prevenido de que havia uma tendência nessa direção. Só há dois tipos de relação sem conflito: as de subordinação e as que não existem. A Argentina é nosso principal parceiro e todo dia você noticia um conflito aqui e ali. Aí entra o papel do Itamaraty, que tem um trabalho cotidiano. Estivemos conversando com o [negociador brasileiro em Genebra] Roberto Azevedo, semanas antes, examinamos dificuldades que havia e estamos trabalhando isso. Mas é reflexão que não faremos sozinhos aqui [no Planalto].
Valor: Como estão as relações Brasil-EUA?
Garcia: Estão num bom caminho. Houve um período de certo azedume, por causa do Irã. Acho que tínhamos razão. Mas não acho que os EUA queiram fazer daquilo um ponto de agravamento das relações, pelo contrário, só temos tido manifestações positivas. Fomos beneficiados em ter Thomas Shannon como embaixador dos EUA aqui, não só pelas impecáveis qualidades profissionais dele, mas porque ele tem buscado dar consistência a essa proximidade.
Valor: E essas acusações feitas em Genebra não afetam essa consistência?
Garcia: Está lembrado da resposta do presidente Lula a umas declarações do [ex-representante comercial dos EUA, Robert] Zoellick, que íamos acabar vendendo geladeira no Polo Sul se não entrássemos na Alca? Disse que era coisa do sub do sub. Não vou responder a um sub do sub.
Valor: Não preocupam os acontecimentos políticos na Venezuela?
Garcia: Temos convicção de que a Venezuela, participando do sistema de países sul-americanos, regido inclusive por algumas cláusulas, a Venezuela vai se ater a isso [o respeito à democracia]. Muitas das observações são tentativa de empurrar a Venezuela numa determinada direção, dizer “olha, é um regime totalitário”, e como já vi dizerem aqui que o presidente Lula ia para o caminho do totalitarismo… A oposição teve bom desempenho nas eleições, tem participação relevante no Congresso, há jornais extremamente críticos ao governo…
Valor: Mas houve propostas de endurecer o controle sobre a sociedade…
Garcia: Ele mesmo recuou dessas propostas, e até com bons argumentos. Evidentemente eu, como professor universitário não poderia ver com nenhuma simpatia qualquer tentativa de imiscuir-se na autonomia da universidade, inclusive no que diz respeito à produção de conhecimento e ele voltou atrás. Tenho de felicitar as coisas que vão na boa direção, não ficar simplesmente na suspicácia.
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