Blog do Diretório Zonal da Freguesia do Ó e Brasilândia do Partido dos Trabalhadores na Cidade de São Paulo - SP

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

PAUSA CULTURAL DE NATAL - LITERATURA - CONTO DE RUBEM BRAGA


Extraído do portal "Vermelho"

Rubem Braga: “É noite de Natal e estou sozinho” (*)

É noite de Natal, e estou sozinho na casa de um amigo, que foi para a fazenda. Mais tarde talvez saia. Mas vou me deixando ficar sozinho, numa confortável melancolia, na casa quieta e cômoda. Dou alguns telefonemas, abraço à distância alguns amigos. Por Rubem Braga (**)


Essas poucas vozes, de homem e de mulher, que respondem alegremente à minha, são quentes, e me fazem bem, "Feliz Natal, muitas felicidades!"; dizemos essas coisas simples com afetuoso calor; dizemos e creio que sentimos; e como sentimos, merecemos. Feliz Natal!

Desembrulho a garrafa que um amigo teve a lembrança de me mandar ontem; vou lá dentro, abro a geladeira, preparo um uísque, e venho me sentar no jardinzinho, perto das folhagens úmidas. Sinto-me bem, oferecendo-me este copo, na casa silenciosa, nessa noite de rua quieta. Este jardinzinho tem o encanto sábio e agreste da dona da casa que o formou. É um pequeno espaço folhudo e florido de cores, que parece respirar; tem a vida misteriosa das moitas perdidas, um gosto de roça, uma alegria meio caipira de verdes, vermelhos e amarelos.

Penso, sem saudade nem mágoa, no ano que passou. Há nele uma sombra dolorosa; evoco-a neste momento, sozinho, com uma espécie de religiosa emoção. Há também, no fundo da paisagem escura e desarrumada desse ano, uma clara mancha de sol. Bebo silenciosamente a essas imagens da morte e da vida; dentro de mim elas são irmãs. Penso em outras pessoas. Sinto uma grande ternura pelas pessoas; sou um homem sozinho, numa noite quieta, junto de folhagens úmidas, bebendo gravemente em honra de muitas pessoas.

De repente um carro começa a buzinar com força, junto ao meu portão. Talvez seja algum amigo que venha me desejar Feliz Natal ou convidar para ir a algum lugar. Hesito ainda um instante; ninguém pode pensar que eu esteja em casa a esta hora. Mas a buzina é insistente. Levanto-me com certo alvoroço, olho a rua e sorrio: é um caminhão de lixo. Está tão carregado, que nem se pode fechar; tão carregado como se trouxesse todo o lixo do ano que passou, todo o lixo da vida que se vai vivendo. Bonito presente de Natal!

0 motorista buzina ainda algumas vezes, olhando uma janela do sobrado vizinho. Lembro-me de ter visto naquela janela uma jovem mulata de vermelho, sempre a cantarolar e espiar a rua. É certamente a ela quem procura o motorista retardatário; mas a janela permanece fechada e escura. Ele movimenta com violência seu grande carro negro e sujo; parte com ruído, estremecendo a rua.

Volto à minha paz, e ao meu uísque. Mas a frustração do lixeiro e a minha também quebraram o encanto solitário da noite de Natal. Fecho a casa e saio devagar; vou humildemente filar uma fatia de presunto e de alegria na casa de uma família amiga.

(*)Texto extraído do livro "A Borboleta Amarela", Editora do Autor - Rio de Janeiro, 1963, pág. 124.

(**) Rubem Braga, considerado por muitos o maior cronista brasileiro desde Machado de Assis, nasceu em Cachoeiro de Itapemirim, ES, a 12 de janeiro de 1913. Como escritor, Rubem Braga teve a característica singular de ser o único autor nacional de primeira linha a se tornar célebre exclusivamente através da crônica, um gênero que não é recomendável a quem almeja a posteridade. Certa vez, solicitado pelo amigo Fernando Sabino a fazer uma descrição de si mesmo, declarou: "Sempre escrevi para ser publicado no dia seguinte. Como o marido que tem que dormir com a esposa: pode estar achando gostoso, mas é uma obrigação. Sou uma máquina de escrever com algum uso, mas em bom estado de funcionamento."

Foi com Fernando Sabino e Otto Lara Resende que Rubem Braga fundou, em 1968, a editora Sabiá, responsável pelo lançamento no Brasil de escritores como Gabriel Garcia Márquez, Pablo Neruda e Jorge Luis Borges.

Segundo o crítico Afrânio Coutinho, a marca registrada dos textos de Rubem Braga é a "crônica poética, na qual alia um estilo próprio a um intenso lirismo, provocado pelos acontecimentos cotidianos, pelas paisagens, pelos estados de alma, pelas pessoas, pela natureza."

Rubem Braga morreu no dia 19 de dezembro de 1990. Deixou extensa bibliografia.

Nenhum comentário:

Postar um comentário